quinta-feira, 28 de maio de 2015

Michael Hudson: “Operação Abutre” na Ucrânia e protestos trabalhistas 28/05/2015


28/5/2015, [*]  Michael Hudson, Naked Capitalism
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Entreouvido no Porãozinho da Macumba na Vila Vudu: O procedimento que aqui se denuncia é/foi padrão em todas as ditaduras implantadas pelos EUA, para “mudar regimes” não subservientes. Aconteceu também no Brasil: o mais importante líder político surgido das lutas históricas da sociedade brasileira contra a ditadura desde os anos 1970, o Ministro José Dirceu, candidato óbvio à presidência do Brasil, agora, por exemplo, na sucessão da presidenta Dilma... foi a primeira vítima do ataque ensandecido do “JUDICIÁRIO”, “jornalistas”, empresas comerciais de “mídia”, políticos etc., a serviço dos interesses norte-americanos.
Ucrânia - Colapso Econômico, Social e Financeiro
O colapso da Ucrânia depois do golpe de fevereiro de 2014 converteu-se num guarda-chuva que protege uma “operação” de “roube-o-que-puder-ização” [1] galopante.
Dano colateral nessa condição de assalto generalizado, tem sido o trabalho. Muitos trabalhadores simplesmente não são pagos, e o que recebem é quase sempre ilegalmente baixo. Os empregadores retiram das contas das empresas o que lá encontrem e transferem tudo – preferencialmente para o ocidente ou, no mínimo para alguma moeda estrangeira.
€Os atrasos salariais são cada dia maiores, porque, com a Ucrânia aproximando-se da véspera de dar calote nos mais de € 10 bilhões que deve a Londres, os cleptocratas e empresários começam a abandonar o navio. Já viram que os empréstimos externos secaram, e que a taxa de câmbio só despencará cada vez mais. O anúncio, pelo Parlamento, semana passada, de que subtraiu € 8 bilhões d da reserva para pagar o serviço da dívida, para usar o dinheiro em mais um ataque militar na região exportadora ocidental do país foi a gota d’água para os credores externos, e até para o FMI. Esses empréstimos ajudaram a sustentar a taxa de câmbio da hryvnia (moeda ucraniana) por tempo suficiente para que banqueiros, empresários e outros “agentes econômicos” tirassem do país a quantidade possível de ativos, o máximo de euros e de US dólares que pudessem, antes do iminente colapso que virá, em junho ou julho.
Nessa situação de pré-bancarrota, esvaziar as prateleiras significa não pagar empregados nem outras contas. Há notícias de que os salários em atraso já alcançariam 2 bilhões de hryvnias, devidas a meio milhão de trabalhadores. Essa situação levou a Federação dos Sindicatos da Ucrânia a organizar um protesto contra o Gabinete de Ministros ontem, 4ª-feira, 27/5/2015. E mais protestos estão marcados para as próximas duas 4ªs-feiras, dias 3 e 10 de junho/2015. Segundo o vice-presidente da Federação Serhiy Kondratiuk,
(...) o atual salário de subsistência de 1.218 hryvnias ucranianas é 60% inferior ao que determina a lei ucraniana, cálculo confirmado também pelo Ministério de Política Social (...). O salário mínimo no país é de 3.500 hryvnias ucranianas mensais. Mas o governo recusa-se a manter diálogo com a sociedade, para revisar os padrões.
O cenário que vem por aí
Esvaziar de vez os bancos comerciais ucranianos deixará prateleiras vazias. Com a economia ucraniana já quebrada, os únicos compradores existentes são milionários europeus e norte-americanos. Vender a estrangeiros é, pois, o único modo de gerentes e proprietários obterem algum retorno significativo – e compras pagas em moeda garantida depositada em contas no exterior, bem longe das futuras taxas e multas ucranianas. Privatização e fuga de capitais andam juntas.
DÍVIDA da Ucrânia - Algum dia tudo isso será de vocês.
E o mesmo se dá no campo do trabalho. Os novos compradores reorganizarão os ativos que compram, declaram a falência das empresas antigas e apagam os salários atrasados, junto com qualquer outra dívida incômoda que os empregados imaginem ter a receber. As empresas reestruturadas declararão que a falência apagou qualquer coisa que os ex-proprietários (ou as empresas públicas) devessem aos empregados. É praticamente o que os fazem nos EUA os compradores da massa falida de empresas, para apagar quaisquer obrigações que haja com pensões ou outras dívidas. Lá como cá, esses abutres declararão que “salvaram” a economia ucraniana e a tornaram “competitiva”.
Operação Abutre
O golpe do general Pinochet no Chile foi ensaio geral para o que hoje se vê em todo o mundo e também na Ucrânia. No Chile, a junta militar golpista apoiada pelos EUA atacou furiosamente líderes sindicais, jornalistas, acadêmicos e líderes políticos potenciais. No Chile, foram extintos todos os Departamentos de Economia nas universidades, exceto os que recebiam “especialistas” em “livre-mercado” vindos de Chicago, e que se concentraram na Universidade Católica. Ninguém pode ter “livre-mercado” à moda Chicago, sem tomar essas medidas totalitárias.
Os estrategistas norte-americanos gostam de dar nomes de aves míticas a esses seus golpes: Operação Fênix, no Vietnã; Operação Condor, na América Latina. Hoje, está em andamento programa semelhante contra falantes de russo que vivem na Ucrânia. Não sei que nome-código darão a mais esse “golpe padrão”. Sugiro chamá-lo Operação Abutre.
Para os sindicalistas, o problema não é só receber salários atrasados mas, também, conseguir algum salário mínimo necessário que permita sobreviver. Se não saírem às ruas e protestarem, simplesmente não serão pagos. Por isso estão organizando uma manifestação “neo-Maidan” a favor, declaradamente, dos direitos dos trabalhadores da Ucrânia – tentando assim que os pistoleiros-atiradores ocultos que matam a serviço do Setor Direita (Pravy Sektor e os neo-nazis do Svoboda [Nrc]) não os tomem por manifestantes pró-Rússia. Os sindicatos estão tentando proteger-se buscando o apoio da Organização Internacional do Trabalho e da Confederação Internacional de Sindicatos em Bruxelas.
A tática mais efetiva para enfrentar a corrupção que está permitindo o não pagamento de salários e aposentadorias, é focar o ataque sobre o apoio externo que o atual regime na Ucrânia recebe, sobretudo do FMI e da União Europeia.
Usar os sofrimentos dos trabalhadores como manto de proteção, para exigir outras reformas. Essas outras reformas podem incluir advertências bem explícitas de que qualquer venda a estrangeiros, de terras, matérias primas, aparelhos de infraestrutura e outros itens do patrimônio público ucraniano são negócios que serão desfeitos no futuro, quando houver na Ucrânia governos menos corruptos.
A favor dos sindicalistas, está o fato de que o FMI já violou suas próprias “Regras para Acordos de Empréstimos”, ao emprestar dinheiro para finalidades militares. No momento em que esse último empréstimo chegou às mãos de Poroshenko, ele anunciou que estava escalando sua guerra contra o leste do país. Esse movimento põe o empréstimo feito pelo FMI bem próximo do que os teóricos de Direito Comercial chamam de “Dívida Odiosa”: dívidas assumidas por junta que toma o poder à força, saqueia o Tesouro e faz dívidas, que deixa para algum futuro governo pagar pelo que a junta tenha roubado.
Operação Abutre
A luta dos sindicatos por salário digno não visa só a saldar dívidas sociais passadas: visa também a pôr em prática um plano de recuperação que proteja a economia ucraniana de ser tratada como a da Grécia ou da Letônia, à moda dos neoliberais.
Estrategistas norte-americanos vem tentando classificar como “Dívida Odiosa” – para escapar da obrigação de saldá-la – os US$ 3 bilhões que a Ucrânia deve à Rússia, que vencem em dezembro. Tentam também classificar essa dívida como “ajuda externa”, o que a tornaria não cobrável. Por irônico que pareça, o Peterson Institute of International Economics, George Soros e outros Guerreiros da Guerra Fria, têm fornecido aos futuros governos ucranianos um vasto repertório de razões plenamente legais, para safarem-se da dívida externa que sufoca o país – e liberar recursos para pagarem salários e aposentadorias em atraso.
Se não for isso, só resta aos credores internacionais pensarem primeiro no FMI, na União Europeia e nos acionistas externos, e deixarem “prá depois” a defesa de direitos soberanos capaz de impedir a autodestruição da Ucrânia.
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Nota dos tradutores
[1] Orig. Grabitization. “A peça central do programa ocidental de rápida privatização do sistema comunista de produção em pouco tempo passou a ser conhecida na Rússia pelo termo grabitization: a apropriação ilegal de patrimônio do estado e da população soviética, por apparatchiks do partido, que logo se tornaram oligarcas com preciosas conexões dentro do poder”.
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[*] Michael Hudson (nascido em 1939, Chicago, Illinois, EUA) é pesquisador emérito e professor de Economia da Universidade do Missouri, em Kansas City. e pesquisador associado do Bard College. É ex-analista e consultor em Wall Street; presidente do “Instituto para o Estudo de Tendências Econômicas de Longo Termo” (Institute for the Study of Long-term Economic Trends − ISLET) e um membro-fundador da “Conferência Internacional de Pesquisadores de Economias do Antigo Oriente Próximo” (International Scholars Conference on Ancient Near Eastern Economies − (ISCANEE). 

terça-feira, 26 de maio de 2015

A privatização do mundo 26/05/2015


A privatização do mundo
por Robert Kurz [*]

Robert Kurz É de supor que a natureza já existisse antes da economia moderna. Daí o facto de a natureza por si própria ser grátis, sem preço. Isso distingue os objectos naturais sem elaboração humana dos resultados da produção social, que já não representam a natureza "em si", mas a natureza transformada pela actividade humana. Esses "produtos", diferentemente dos objectos naturais puros, nunca foram de livre acesso; desde sempre estavam sujeitos, segundo determinados critérios, a um modo de distribuição socialmente organizado. Na modernidade, é a forma da produção de mercadorias que regula essa distribuição no modo do mercado, segundo os critérios de dinheiro, preço e procura (solvente). Mas é um problema antigo que a organização da sociedade tenda a obstruir também o livre acesso a um número crescente de recursos pré-humanos da natureza. Essa ocupação traz, das mais diversas formas, o mesmo nome que os produtos da actividade social, a chamada "propriedade". Ou seja, acontece um quiproquó: outrora livres, os objectos naturais não elaborados pelo ser humano são tratados exactamente como se fossem os resultados da forma de organização social, e daí submetidos às mesmas restrições.

A mais antiga ocupação dessa espécie é a da terra. A terra em si não é naturalmente o resultado da actividade produtiva humana. Por isso também teria de ser, em si, de livre acesso. Quando muito, a terra já transformada, lavrada e "cultivada" poderia estar submetida aos mecanismos sociais; e, nesse caso, teria de se tornar propriedade daqueles indivíduos que a cultivaram. Mas, como se sabe, não é exactamente esse o caso. Justamente a terra ainda de todo inculta é usurpada com violência. Já na Bíblia há a disputa entre lavradores e criadores de gado por território (Caim e Abel) e, entre os pastores nómadas, por "pastos mais férteis". A usurpação do solo "virgem" é o pecado original e hereditário da "dominação do homem sobre o homem" (Marx). As aristocracias de todas as altas culturas agrárias repressivas se formaram na origem por essa apropriação violenta da terra, literalmente à clava e dardo. Contudo a propriedade nas culturas agrárias pré-modernas nem de longe se parecia com a propriedade privada no sentido atual. Isso significava, antes de tudo, que a propriedade não era exclusiva ou total. A terra podia ser utilizada e cultivada também por outros, que em troca pagavam certos tributos (a renda feudal na forma de víveres ou serviços) aos proprietários, estes originariamente violentos. Mas havia ainda possibilidades de uso gratuito. Por exemplo, em muitos lugares, os camponeses tinham a permissão de conduzir seus porcos até às terras incultas do senhor feudal, segar ali forragens crescendo livremente ou recolher outras matérias naturais. Diferentes possibilidades de uso livre nunca deixaram de ser controversas, como o direito à caça e à pesca. Quando os senhores feudais tentavam estabelecer proibições nesse sentido, estas quase nunca eram obedecidas. Assim, o caçador e o pescador ilegais passaram a figurar entre os heróis da cultura popular pré-moderna.

A DITADURA DA PROPRIEDADE

A propriedade privada moderna reforçou monstruosamente a submissão da natureza "livre" à forma da organização social, obstruindo assim o acesso aos recursos naturais com um rigor nunca visto. Essa intensificação da tendência usurpadora tem sua razão no facto de a ocupação ser efectuada agora não mais pelo acto pessoal e imediato de violência, mas pelo imperativo económico moderno, representando uma violência "coisificada" de segunda ordem. A violência armada imediata manifesta-se ainda hoje na ocupação dos recursos naturais, mas ela é já coisificada de forma institucional na própria figura da polícia e do Exército. A violência que sai dos canos das espingardas modernas já não fala por si mesma; ela tornou-se mero agente do fim em si mesmo económico. Esse deus secularizado da modernidade, o capital como "valor que se autovaloriza" incessantemente (Marx), não aparece, porém, apenas na figura de uma coisificação irracional; ele é ainda muito mais ciumento que todos os outros deuses antes dele. Por outras palavras: a economia moderna é totalitária. Ela tem uma pretensão total sobre o mundo natural e social. Por isso, tudo o que não está submetido e assimilado à sua lógica própria é para ela fundamentalmente uma espinha na garganta. E, como sua lógica consiste única e exclusivamente na valorização permanente do dinheiro, ela tem de odiar tudo o que não assume a forma de um preço monetário. Não deve haver nada mais debaixo do céu que seja gratuito e exista por natureza. A propriedade privada moderna representa somente a forma jurídica secundária dessa lógica totalitária. Ela é, por isso, tão totalitária quanto esta: o uso deve ser um uso exclusivo. Isso vale particularmente para os recursos naturais primários da terra. Sob a ditadura da propriedade privada moderna, não é mais tolerado nenhum uso gratuito para a satisfação das necessidades humanas, além das oficiais: os recursos têm de servir à valorização ou ficar em pousio. Dada a forma da propriedade privada, mesmo a parte da terra que o próprio capital não pode de modo nenhum usar deve ser excluída de qualquer outro uso. Essa imposição descabida suscitou repetidas vezes o protesto social. Na época anterior a 1848, uma experiência crucial para o jovem Marx, amiúde enfatizada na sua biografia, foi a discussão em torno da "lei prussiana contra o roubo de lenha", que queria proibir os pobres de recolher gratuitamente a lenha nas florestas. O conflito sobre o uso livre de bens naturais, sobretudo da terra, jamais cessou em toda a história do capitalismo. Mesmo hoje, em muitos países do Terceiro Mundo, há movimentos sociais de "ocupantes da terra" que colocam em questão a ditadura totalitária da propriedade privada moderna sobre o uso do solo.

No desenvolvimento do moderno sistema produtor de mercadorias, o problema primário do acesso a recursos naturais gratuitos foi sobrepujado pelo problema secundário do acesso a recursos "públicos", directamente relacionados ao todo da sociedade: as chamadas infraestruturas. Com a industrialização capitalista e a inerente aglomeração de massas gigantescas de seres humanos (urbanização), surgiram carências sociais, tornando necessárias medidas que não podiam ser definidas pela lei do mercado, mas somente pela administração social directa. Por um lado, trata-se agora de sectores inteiramente novos, resultantes do processo de industrialização, como o serviço público de saúde, as instituições públicas de ensino (escolas, universidades, etc.), as telecomunicações públicas (correio, telefone), o abastecimento de energia e os transportes públicos (caminho de ferro, metropolitano, etc.). Por outro lado, também os recursos naturais antes livremente acessíveis sem nenhuma organização social e os processos vitais humanos que se efectuam por si mesmos tiveram de ser socialmente organizados e colocados sob a administração pública: é o caso do abastecimento público de água potável, da recolha pública de lixo, dos esgotos públicos etc., chegando aos sanitários públicos nas grandes cidades. Sob as condições do moderno sistema produtor de mercadorias, a "administração de coisas" pública e colectiva não pode assumir senão a forma distorcida de um aparelho burocrático estatal. Pois a forma moderna "Estado" representa somente o reverso, a condição estrutural e a garantia do "privado" capitalista; o Estado não pode, por natureza, assumir a forma de uma "associação livre". A administração pública de coisas permanece assim nacionalmente limitada, burocraticamente repressiva, autoritária e ligada às leis fetichistas da produção de mercadorias. Por isso os serviços públicos assumem a mesma forma-dinheiro que a produção de mercadorias para o mercado. Ainda assim não se trata de preços de mercado, mas somente de tarifas; algumas infra-estruturas até são oferecidas gratuitamente. O Estado financia esses serviços e agregados de coisas somente para uma pequena parte, por meio de tarifas cobradas dos cidadãos; no essencial, eles são subvencionados com a taxação dos rendimentos capitalistas (salários e lucros). Desse modo, a administração pública de coisas permanece ligada ao processo de valorização do capital.

A PRIVATIZAÇÃO DO PÚBLICO

Por um período de mais de cem anos, os sectores do serviço público e da infra-estrutura social foram reconhecidos em toda parte como o necessário suporte, amortecimento e superação de crises do processo do mercado. Nas últimas duas décadas, porém, impôs-se no mundo inteiro uma política que, exactamente às avessas, resulta na privatização de todos os recursos administrados pelo Estado e dos serviços públicos. De modo algum essa política de privatização é defendida apenas por partidos e governos explicitamente neoliberais; há muito ela prepondera em todos os partidos. Isso indica que não se trata aqui só de ideologia, mas de um problema de crise real. Seguramente, desempenha um papel nisso o facto de a arrecadação pública de impostos retroceder com rapidez por conta da globalização do capital. Os Estados, as Províncias e as comunas super-endividadas em todo o mundo tornaram-se factores de crise económica, ao invés de poderem ser activos como factores de superação da crise. Uma vez delapidadas as "pratas" dos sistemas socialmente administrados, as "mãos públicas" acabam por assemelhar-se fatalmente às massas de vítimas da velhice indigente, que nas regiões críticas do globo vendem nos mercados de segunda mão a mobília e até a roupa para poderem sobreviver. Porém o problema reside ainda mais no fundo. No âmago, trata-se de uma crise do próprio capital, que, sob as condições da terceira revolução industrial, esbarra nos limites absolutos do processo real de valorização. Embora ele deva expandir-se eternamente, pela sua própria lógica, ele encontra cada vez menos condições para tal, nas suas próprias bases. Daí resulta um duplo acto de desespero, uma fuga para a frente: por um lado, surge uma pressão assustadora para ocupar ainda os últimos recursos gratuitos da natureza, por fazer até mesmo da "natureza interna" do ser humano, da sua alma, da sua sexualidade, do seu sono o terreno directo da valorização do capital e, com isso, da propriedade privada. Por outro, as infraestruturas públicas de propriedade do Estado devem ser geridas, também, por sectores do capitalismo privado.

SOCIEDADE AUTO-CANIBALÍSTICA

Mas essa privatização total do mundo mostra definitivamente o absurdo da modernidade; a sociedade capitalista torna-se auto-canibalística. A base natural da sociedade é destruída com velocidade crescente; a política de diminuição dos custos e a terceirização a todo o preço arruinam a base material das infraestruturas, o conjunto organizador e, com isso, o valor de uso necessário. Há tempos é conhecido o caso desastroso das ferrovias e, de modo geral, dos meios de transporte, outrora públicos: quanto mais privados, tanto mais deteriorados e mais perigosos para a comunidade. O mesmo quadro se constata nas telecomunicações, nos correios etc. Quem hoje precisa, com uma mudança de casa, mandar instalar um telefone novo passa por incumprimento de prazos, confusão de competências entre as instâncias "terceirizadas" e técnicos pseudo-autónomos e praguejantes. O correio alemão, que se transformou num consórcio e global player ansioso por sua capitalização nas Bolsas, em breve distribuirá cartas na Califórnia ou na China; em troca, o serviço mais simples de entrega mal continua a funcionar internamente. Que prodígio sectores inteiros de actividade serem ajustadas a salários baixos, as zonas de entrega de poucos carteiros dobradas e triplicadas, e as filiais, extremamente desguarnecidas! As estações de correio ou de caminho de ferro transformam-se em quilómetros cintilantes de lojas estranhas à sua alçada, enquanto a qualidade do serviço próprio decai. Quanto mais estilizados os escritórios, tanto mais miserável o serviço.

PRIVATIZAÇÃO  —>   AUMENTO DE PREÇOS

Apesar de todas as promessas, a privatização significa cedo ou tarde não só a piora mas também o aumento drástico de preços. Porque és pobre, tens de morrer mais cedo: com a privatização crescente dos serviços de saúde, essa velha sabedoria popular recebe novas honras mesmo nos países industriais mais ricos. A política de privatização não dá trégua nem sequer às necessidades humanas mais elementares. Na Alemanha, as casas de banho das estações de combóio passaram a ser recentemente controladas por uma empresa transnacional chamada "McClean", que cobra pela utilização de um mictório tanto como por uma hora de estacionamento no centro da cidade. Portanto agora já se diz: se és pobre, tens de mijar nas calças ou aliviar-te ilegalmente!

A privatização do abastecimento de água na cidade boliviana de Cochabamba, que, por determinação do Banco Mundial, foi vendida a uma "empresa de água" norte-americana, mostra o que ainda nos espera. Em poucas semanas, os preços foram elevados a tal ponto que muitas famílias tiveram de pagar até um terço dos seus rendimentos pela água diária. Juntar água da chuva para beber foi declarado ilegal, e ao protesto respondeu-se com o envio de tropas. Logo também o sol não brilhará de graça. E quando virá a privatização do ar que se respira? O resultado é previsível: nada funcionará mais, e ninguém poderá pagar. Nesse caso, o capitalismo terá de fechar tanto a natureza como a sociedade humana por "escassez de rentabilidade" e abrir uma outra.
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[*] Filósofo alemão. O original deste artigo encontra-se em http://www.krisis.org ("Die Privatisierung der Welt"). Tradução de Luís Repa publicada na Folha de São Paulo de 14/Jul/02.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info

terça-feira, 5 de maio de 2015

Mídia:Época, da Globo, mente, Lula desmente 05/05/2015

Jornalista da revista Época (da Globo), mente. Lula, desmente

As sete mentiras da capa de Época sobre Lula
A revista Época, em nota assinada pelo seu editor-chefe, Diego Escosteguy, na sexta-feira (1), reafirmou o que está escrito na matéria “Lula, o operador”, como sendo correto e verdadeiro. Como a nota do seu editor é uma reiteração de erros cometidos pela revista, apontamos aqui as 7 principais dentre as muitas mentiras da matéria de Época.

Primeira mentira -  dizer que Lula está sendo investigado pelo Ministério Público.
A Época afirma que o Ministério Público abriu "uma investigação" na qual o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva seria "formalmente suspeito" de dois crimes. Época não cita fontes nem o nome do procurador responsável pelo procedimento.
O Núcleo de Combate à Corrupção da Procuradoria da República do Distrito Federal não abriu qualquer tipo de investigação sobre as atividades do ex-presidente Lula. O jornal O Globo, do mesmo grupo editorial, ouviu a propósito a procuradora Mirella Aguiar sobre o feito em curso e ela esclareceu: há um “procedimento preliminar”, decorrente de representação de um único procurador, uma “notícia de fato”, que poderá ou não desdobrar-se em investigação ou inquérito, ou simplesmente ser arquivada.
A mesma diferenciação foi observada pelo jornal The New York Times e pela agência Bloomberg. O The New York Times chamou de "preliminary step" (um passo preliminar) e não de investigação.
Isso não é um detalhe, e para quem preza a correção dos fatos, faz diferença do ponto de vista jurídico e jornalístico.
Ao publicar apenas parcialmente o cabeçalho de um documento do MP, sem citar os nomes do procurador Anselmo Lopes, que provocou a iniciativa, e da procuradora Mirella, que deu prosseguimento de ofício, e sem mostrar do que realmente se trata o procedimento, Época tenta enganar deliberadamente seus leitores.
Segunda mentira- Lula seria lobista
No início da matéria a revista lembra um fato: Lula deixou o poder em janeiro de 2011 com grande popularidade e desde então, não ocupa mais cargo público. Segundo a revista, Lula faria lobby para privilegiar seus "clientes". Que fique bem claro, como respondemos à revista: o ex-presidente faz palestras e não lobby ou consultoria.
A revista Época colocou todas as respostas das pessoas e entidades citadas nas suas ilações no fim da matéria, que não está disponível na internet. Por isso vale ressaltar trecho da resposta enviada pelo Instituto Lula:
"No caso de atividades profissionais, palestras promovidas por empresas nacionais ou estrangeiras, o ex-presidente é remunerado, como outros ex-presidentes que fazem palestras. O ex-presidente já fez palestras para empresas nacionais e estrangeiras dos mais diversos setores - tecnologia, financeiro, autopeças, consumo, comunicações - e de diversos países como Estados Unidos, México, Suécia, Coreia do Sul, Argentina, Espanha e Itália, entre outros. Como é de praxe as entidades promotoras se responsabilizam pelos custos de deslocamento e hospedagem. O ex-presidente faz palestras, e não presta serviço de consultoria ou de qualquer outro tipo."
Os jornalistas Thiago Bronzatto e Felipe Coutinho, que assinam o texto, chamam Lula de "lobista em chefe".  A expressão, além de caluniosa, não condiz com a verdade, e revela o preconceito e a ignorância dos jornalistas de Época em relação ao papel de um ex-presidente na defesa dos interesses de seu país.
O que Lula fez, na Presidência e fora dela, foi promover o Brasil e suas empresas. Nenhum presidente da história do país liderou tantas missões de empresários ao exterior, no esforço de internacionalizar nossas empresas e aumentar nossas exportações.

Terceira mentira – sobre as viagens de Lula
A “reportagem” de Época não tem sustentação factual. A revista afirma que nos últimos quatro anos Lula teria viajado constantemente para "cuidar dos seus negócios”. E continua: “Os destinos foram basicamente os mesmos - de Cuba a Gana, passando por Angola e República Dominicana." 
Vamos deixar bem claro: o ex-presidente não tem nenhum negócio no exterior. E, ao dizer “a maioria das andanças de Lula foi bancada pela construtora Odebrecht”, mente novamente a revista. Não é verdade que a maioria das viagens do ex-presidente foi paga pela Odebrecht. Repetimos trecho da nota enviada para a revista: “O ex-presidente já fez palestras para empresas nacionais e estrangeiras dos mais diversos setores - tecnologia, financeiro, autopeças, consumo, comunicações - e de diversos países como Estados Unidos, México, Suécia, Coreia do Sul, Argentina, Espanha e Itália, entre outros. Como é de praxe as entidades promotoras se responsabilizam pelos custos de deslocamento e hospedagem.”
Mesmo sem ter obrigação nenhuma de fazê-lo, as viagens do ex-presidente estão documentadas no site do Instituto Lula e as suas viagens ao exterior foram informadas à imprensa.
De novo, diferente do que diz a revista, depois que deixou a Presidência, Lula viajou para muitos países, e o mais visitado foi os Estados Unidos da América (6 viagens), onde entre outras atividades recebeu o prêmio da World Food Prize (http://www.institutolula.org/lula-recebe-nos-eua-premio-por-trabalho-de-combate-a-fome), pelos seus esforços de combate à fome, em outubro de 2011, e do International Crisis Group, em abril de 2013,  por ter impulsionado o Brasil em uma nova era econômica e política (http://www.institutolula.org/lula-recebe-premio-em-nova-york-por-impulsionar-o-pais-a-nova-era-economica-e-politica). 
Nos EUA encontrou-se ainda, por duas vezes, com o ex-presidente Bill Clinton --que também tem o seu instituto e também faz palestras. 
Dois países empatam no segundo lugar de mais visitados por Lula após a presidência: o México e a Espanha (5 visitas cada um). No México, além de proferir palestras para empresas do país, Lula recebeu o prêmio Amalia Solórzano, em outubro de 2011 (http://www.institutolula.org/lula-recebe-no-mexico-o-premio-amalia-solorzano) e lançou, junto com o presidente Peña Nieto, a convite do governo mexicano, um programa contra a fome inspirado na experiência brasileira: http://www.institutolula.org/lula-no-mexico-eu-vim-aqui-dar-um-testemunho-e-possivel-acabar-com-a-fome-do-mundo . 
Os leitores que eventualmente confiem na Época como sua única fonte de informação, não só não foram informados desses prêmios, como foram mal informados sobre as atividades do ex-presidente  no exterior.
Sobre os países citados pela revista, Lula esteve, desde que saiu da presidência, três vezes em Cuba, duas em Angola, e somente uma vez em Gana e na República Dominicana, os dois países mais citados na matéria. 
A revista diz serem “questionáveis” moralmente as atividades de Lula como ex-presidente. Em primeiro lugar, como demonstrado acima, a revista está mal informada ou informando mal sobre tais atividades (provavelmente os dois). Por exemplo, a revista acha moralmente questionável organizar, na Etiópia, um Fórum pela Erradicação da Fome na África, junto com a FAO e a União Africana (http://www.institutolula.org/e-preciso-investir-nos-pobres-para-acabar-com-a-fome-disse-lula-a-uma-plateia-de-15-chefes-de-estado-africanos)? Esse evento não foi noticiado pela Época, nem pela Veja. Mas foi noticiado pelo jornal britânico The Guardian (em inglês - http://www.theguardian.com/global-development/2013/jul/01/africa-brazil-hunger-lula). 
Ou em Angola, país citado pela Época, a revista acha moralmente questionável fazer uma grande conferência, (http://www.institutolula.org/lula-em-angola-e-possivel-para-qualquer-pais-acabar-com-a-fome) para mais de mil representantes do governo, do congresso, de partidos políticos e de ONGs, além de acadêmicos e jornalistas angolanos, reunidos para ouvir sobre as políticas públicas de Angola e do Brasil para reduzir a pobreza e promover o desenvolvimento econômico?
Ou em Gana participar de um evento organizado pela ONU, lotado e acompanhado pela mídia local, novamente sobre combate à fome (http://www.institutolula.org/e-plenamente-possivel-garantir-que-todo-ser-humano-possa-comer-tres-vezes-ao-dia-diz-lula-em-gana)? 
Parafraseando a revista, moralmente, o jornalismo de Época, que mente para seus leitores desde a capa da revista, é questionável. Mas será que à luz das leis brasileiras, há possibilidade de ser objeto de ação judicial?

Quarta mentira – sobre a visita de Luiz Dulci à República Dominicana
A revista Época constrói teorias malucas não só sobre as viagens do ex-presidente, mas questiona e faz ilações também sobre a visita do ex-ministro e diretor do Instituto Lula, Luiz Dulci, à República Dominicana em novembro de 2014. A revista foi informada, e publicou que o ex-ministro viajou ao país para fazer uma conferência, mas não que era sobre as políticas sociais brasileiras. Deu entrevistas à imprensa local e foi convidado pelo presidente Medina para uma conversa sobre as políticas sociais brasileiras, das quais o presidente dominicano é um admirador. A revista registrou apenas como “versão” que Dulci foi convidado pelo Senado do país. Todos os documentos do convite e da viagem estão disponíveis para quem quiser consultá-los.  O que a revista não fez antes de se espantar com o interesse no exterior sobre os  êxitos do governo Lula.
Quinta mentira – a criminalização da atividade diplomática do Brasil em Gana
Época relaciona como denúncia “dentro de um padrão”, um comunicado diplomático feito pela embaixada brasileira no país um ano antes de Lula visitar Gana, enviado em 30 de março de 2012. Lula esteve em Gana apenas um ano depois de tal comunicado, em março de 2013. É importante lembrar aos jornalistas “investigativos” da Época, que em março de 2012, Lula estava se recuperando do tratamento feito contra o câncer na laringe, que havia sido encerrado no mês anterior. 
Quanto ao telegrama de Irene Gala, embaixadora do Brasil em Gana, a resposta do Itamaraty colocada no fim do texto da Época, malandramente longe da ilação contra a diplomata, é cristalina sobre não haver qualquer irregularidade nele: “O Itamaraty tem, entre as suas atribuições, a atuação em favor de empresas brasileiras no exterior. Nesse contexto, a realização de gestões com vistas à realização de um investimento não constitui irregularidade.”
É lamentável que o grau de parcialidade de certas publicações tenha chegado ao ponto de tentar difamar funcionários públicos de carreira por simplesmente fazerem o que é parte de suas atribuições profissionais. Seria como criticar uma embaixada brasileira por dar apoio a um jornalista da Época, uma empresa privada, quando o mesmo estivesse em visita a um país.
Sexta mentira – a criminalização do financiamento à exportação de serviços pelo Brasil
A revista criminaliza e partidariza a questão do financiamento pelo BNDES de empresas brasileiras na exportação de serviços. É importante notar que esse financiamento começou antes de 2003, ou seja, antes do governo do ex-presidente Lula. 
Sobre o tema, se pronunciou o BNDES em comunicado (https://www.facebook.com/bndes.imprensa), e também a Odebrecht  (http://odebrecht.com/pt-br/comunicacao/releases/nota-de-esclarecimento-01052015). A questão foi analisada em textos de Marcelo Zero (http://www.pt.org.br/ignorancia-ou-ma-fe-amparam-desinformacao-do-mp-publicada-pela-epoca/) e Luís Nassif (http://jornalggn.com.br/noticia/na-epoca-o-alto-custo-da-politizacao-do-ministerio-publico-federal), que lembrou que a publicação irmã de Época, Época Negócios, exaltou a internacionalização das empresas brasileiras em outubro de 2014.
Sétima e maior mentira – o “método jornalístico” de Época
Bolsas de estudo pomposas nos Estados Unidos pagas por institutos conservadores (http://www.institutomillenium.org.br/blog/instituto-ling-concede-mais-27-bolsas-de-estudos-exterior/) valem pouco se o jornalismo é praticado de maneira açodada, com má vontade e parcialidade, de uma forma mentirosa. 
Não é a primeira vez que o Instituto Lula, ou outras pessoas e entidades tem contato com o método “Época” de jornalismo (que não é também exclusivo desta revista). Resumindo de forma rudimentar, o método constitui na criação de narrativas associando fatos, supostos fatos ou parte de fatos que não têm relação entre si, e que são colados pelo jornalista, construindo teorias sem checar com as fontes se a realidade difere da sua fantasia.
Poucas horas antes do fechamento, quando pelos prazos de produção jornalística provavelmente a matéria já está com as páginas reservadas na revista, capa escolhida e infográficos feitos, o repórter entra em contato, por e-mail, com as pessoas citadas na matéria. Em geral sem contar sobre o que realmente o texto se trata (Época não perguntou ou mencionou a iniciativa do Ministério Público). Não há interesse real em verificar se as acusações, em geral muito pesadas, se sustentam e justificam o espaço dado ao assunto ou o enfoque do texto.
Mesmo que a tese do jornalista não se comprove, a matéria não será revista e será publicada.  Na “melhor” das hipóteses, as respostas das pessoas e entidades envolvidas serão contempladas ao final da matéria, e este trecho não será disponibilizado online (e muitas vezes não é visto com cuidado por jornalistas de outros veículos que dão a “repercussão” do fato). É feito assim, primeiro porque a revista não teria nenhuma matéria para colocar no lugar, e segundo porque isso poderia afetar o impacto político, bem como a repercussão em outros órgãos de imprensa e nas mídias sociais. 
Foi exatamente isso que a Época fez. Contatou o Instituto Lula, a partir de Brasília, três horas antes do fechamento. Haviam duas opções: falar por telefone ou por e-mail. O presidente do Instituto Lula, Paulo Okamotto, para registrar inclusive as perguntas e respostas à revista, optou por responder por e-mail, lamentando que não houve a possibilidade de esclarecer as dúvidas da revista pessoalmente (http://www.institutolula.org/resposta-do-instituto-lula-a-revista-epoca).
É importante registrar que Época ou não ouviu, ou não registrou o outro lado de todos os citados na matéria. Cita e publica fotos de dois chefes de Estado estrangeiros, John Dramani Mahama, de Gana, e Danilo Medina, da República Dominicana, ambos eleitos democraticamente e representantes de seus respectivos países. E não os ouve, nem suas embaixadas no Brasil. 
Mais absurdo ainda porque, em tese, a revista Época deveria seguir os “Princípios Editoriais do Grupo Globo”, do qual faz parte, e que foram anunciados  para milhões de brasileiros, no Jornal Nacional (http://g1.globo.com/principios-editoriais-do-grupo-globo.html).  
Como a revista não parece respeitar o jornalismo, diplomatas, chefes de estado dominicanos ou ganenses, ou ex-ministros e ex-chefes de estado brasileiros, melhor lembrar a recomendação de um norte-americano, Joseph Pulitzer, sobre os danos sociais da má prática jornalística. “Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária e demagógica formará um público tão vil quanto ela mesma.” 
Assessoria de Imprensa
Instituto Lula

http://osamigosdopresidentelula.blogspot.com.br/

Ser de esquerda 05/05/2015

por Daniel Vaz de Carvalho

 
Um socialista é mais do que nunca um charlatão social que quer, usando um conjunto de panaceias e todos os tipos de remendos, suprimir as misérias sociais, sem fazer o menor dano ao capital e ao lucro.
Engels
1 - A demanda do "Graal" capitalista por certa "esquerda" [1]

A veemência de Engels ganha maior relevo nos tempos atuais. Uma primeira evidência é designar-se como "esquerda" ideias e partidos que exibindo-se como "esquerda" não passam de máscaras para o neoliberalismo e uma intransigente defesa do sistema capitalista, em suma políticas de direita.

Segundo Engels, "os chamados socialistas dividem-se em três categorias". Os reacionários, que, pese embora a fingida compaixão pela miséria do proletariado, esforçam-se por restabelecer os privilégios e o domínio da aristocracia (atualmente financeira) e os donos da grande indústria. Os comunistas lutarão sempre contra esta categoria, pois não oferecem a menor perspectiva de libertação dos trabalhadores. Mostram os seus verdadeiros sentimentos cada vez que o proletariado se torna revolucionário, aliando-se à burguesia contra o proletariado. A segunda categoria, os socialistas burgueses, são partidários da sociedade atual. Para suprimir os seus males propõem grandiosos planos de reformas mantendo todas as bases dessa mesma sociedade. Trabalham de facto para os inimigos dos comunistas. A terceira categoria os social-democráticos, propõem em parte medidas comuns aos comunistas, não como forma de transição para a sociedade comunista, mas apenas como meio que seria suficiente para acabar com a miséria e males da sociedade atual. Os comunistas entender-se-ão com eles nos momentos de ação e no possível para ter uma política comum sempre que não se coloquem ao serviço da burguesia. [2]

Encontramos evidência das duas primeiras categorias no PS. A terceira categoria corresponde, parece-nos, ao Bloco de Esquerda. A social-democracia/socialismo reformista, intitula-se de esquerda, mas apenas pretende gerir um modelo de capitalismo idealizado, sem antagonismos, economicamente racional, moralmente humanitário, ignorando e querendo que se ignore que a racionalidade capitalista reside exclusivamente na maximização do lucro e a sua moral social esvai-se na concorrência, na anarquia da produção, nas necessidades de recapitalização originadas pelas crises provocadas pelo capital monopolista e financeiro.

Efetivamente, o "capitalista pode ser um cidadão exemplar, mas enquanto capitalista é capital personificado. A sua alma é a alma do capital e tem um único impulso vital, o de se valorizar, de criar mais-valia, de sugar a maior parte possível de sobretrabalho. [3]

O PS é um partido democrático, porém a sua democracia radica numa "idílica abstração dos antagonismos de classe" (Marx, A Luta de Classes em França ). O PS prossegue a miragem de um "bom capitalismo", uma tese que o arrasta para toda a espécie de conservadorismos. As críticas ao governo PSD-CDS limitam-se ao circunstancial, considerando-se capaz de fazer funcionar melhor o capitalismo. Esquece que a sua miragem dos anos 60, foi o resultado de duras lutas de classe, organizadas na base de sentimentos revolucionários, após a derrota do nazi-fascismo e, claro, também da exploração imperialista e neocolonial sobre os países dependentes. O Syriza é o mais recente exemplo do fracasso da social-democracia na demanda de um "bom capitalismo". [4]

2 - A social-democracia esteio da política de direita

Se se chegou ao descalabro em que o país e a UE se encontram foi porque, como Engels salientou, nos momentos decisivos da luta de classes a social-democracia/socialismo reformista se colocou ao lado do capital e do divisionismo das camadas trabalhadoras (como foi evidente no Portugal pós-25 de Abril) até alinhar com o neoliberalismo, mascarando-o de "socialismo do século XXI". Nuns casos preparou o caminho para a direita, noutros prosseguiu e aprofundou essas políticas, como T. Blair relativamente a Thatcher, Hollande relativamente a Sarkozy ou o PS relativamente ao PSD-CDS.

Os partidos ditos socialistas, sociais em palavras, neoliberais na realidade, aliaram-se à direita para entregar a soberania nacional aos ditames da UE e apoiam esse verdadeiro golpe de estado que é a TTIP. [5] Para além das diatribes parlamentares, o PS alheia-se ou mesmo combate as lutas populares. As suas cedências permitiram que a direita avançasse para uma ofensiva fascizante, com que metodicamente procura destruir a Constituição de Abril.

A austeridade foi a forma de colocar os povos a pagar as consequências de um sistema em crise, com a arrogância antidemocrática de que não há alternativa ao aumento das desigualdades e da pobreza, à entrega da riqueza criada à especulação financeira, aos monopólios, às privatizações, etc. Uma moral que se limita a "espoliar a classe trabalhadora e dar alguma coisa aos pobres" (Jane Rockfeller). O resto são remendos orçamentais.

Para manter uma ficção de pluralismo a oligarquia precisa de um partido que nas vésperas eleitorais se exiba como de esquerda. Na realidade, a missão que lhe é confiada é a permanente divisão das camadas trabalhadoras, de forma a impor uma política de direita com o mínimo de sobressaltos. Foi assim que se estabeleceu o conceito de "partidos do arco da governação", eufemismo que designa o partido único neoliberal, prioritariamente ao serviço da oligarquia, em conformidade com a ideologia do grupo de Bildelberg, onde dirigentes e propagandistas do "arco da governação" vão receber o "crisma" da religião neoliberal.

3 - Romper com a política de direita

De forma simples, uma política de esquerda deve consistir em romper com a política de direita no que ela tem de desigualdades, privilégios ao capital monopolista e financeiro, leis antilaborais, liquidação das funções sociais e económicas do Estado, etc. No entanto, tudo isto é posto em prática por partidos que se designam de socialistas e de "esquerda". Dizer que o governo PSD-CDS tem um programa de fundamentalismo ideológico, é apenas dizer que criticando o fundamentalismo mantêm a mesma ideologia.

O PS apresentou um "cenário macroeconómico". A palavra "cenário" é adequada à farsa do "arco da governação". Os partidos à esquerda do PS fizeram consistentes análises que não cabe aqui reproduzir. Salientamos contudo alguns aspetos.

Em primeiro lugar, as escolhas que passam por económicas na realidade são políticas e ideológicas. A visão da sociedade, os critérios políticos são os mesmos do PSD-CDS: a aceitação acrítica dos dogmas da UE, do euro, do neoliberalismo. Porém, aceitar os critérios da UE e pretender crescimento económico e justiça social é querer escrever direito por linhas tortas. Claro que a desregulação do mercado financeiro, a recusa do planeamento e da soberania económica e monetária impede que as previsões possam ter qualquer grau de rigor.

O "cenário" do PS ignora completamente o chamado triângulo das impossibilidades em política orçamental. "O Estado português terá de escolher duas das três seguintes opções: (1) cumprir o Tratado Orçamental; (2) pagar a dívida pública nos termos atualmente previstos; (3) preservar um Estado Social típico de uma sociedade desenvolvida." [6]

A renegociação da dívida, a questão do euro como moeda única, são tabu para o PS. A fiscalidade para o grande capital permanece intocável, a austeridade mantém-se "sobre os mesmos": o que dá agora, tira depois, o que é tirado agora permanece. Declamando sobre a dignidade do trabalho, propõe-se rever (novamente!) a lei laboral para facilitar os despedimentos…sempre em nome do "crescimento e do emprego".

Não vai tão longe como o P-M francês que apela à "unidade da esquerda", mas apresenta a lei Macron, em França a lei mais reacionária desde há 70 anos, que sobrepõe a negociação individual entre trabalhador e patronato à contratação coletiva. É como que o reestabelecer da famigerada Lei Chappelier, anulada em 1861 graças à abnegada luta dos trabalhadores.

Os economistas ortodoxos – que o "cenário" segue – veem o mundo como uma máquina complexa, mas que pode ser orientada conforme pretendido atuando sobre uma ou outra alavanca, conduzindo a um hipotético "equilíbrio geral". [7] Ora, o que cientificamente se sabe, é que a aplicação de um determinado modelo em sistemas complexos – mesmo semelhantes – pode dar origem a comportamentos muito diferentes, dependendo das condições iniciais. Simplificações que ignoram estes factos servem de argumento aos "incentivos ao capital", à austeridade, às sucessivas revisões da legislação laboral, a redução dos impostos ao grande capital, etc.

A política de direita praticada pelo PS, PSD e CDS, é defendida como "realismo". Ser "realista" é então não questionar essa mesma realidade, um conformismo reacionário para deixar intocáveis os privilégios da oligarquia. Compreende-se esta atitude por parte de propagandistas e dos que se amesendam em conselhos de administração e sociedades de advogados consultoras, ora do governo ora de concessionárias, mas não de quem se pretende de "esquerda".

4 – Visão de uma política de esquerda

O neoliberalismo é uma aberração em termos intelectuais: pretende aplicar critérios do liberalismo, estabelecidos para um universo de MPME, a uma economia dominada por megaempresas e monopólios. Para fazer passar a sua agenda ideológica os propagandistas do neoliberalismo dizem que não faz sentido falar em "esquerda" e "direita". Claro que se referem ao "arco da governação"!

Não deixa também de ser curioso ver certos grupos que argumentando com a "unidade da esquerda" se fragmentam, evidenciando alguma retórica, mas pouca capacidade de organização. No essencial, dão a ideia de querer converter o PS à "boa nova" de um capitalismo minorado. Definem um conjunto de boas intenções, mas não soluções para as suas causas.

Frederic Lordon dá-nos uma visão de requisitos duma esquerda consequente. Ser de esquerda, diz, é uma posição em relação ao capital. Não permitir o domínio do capital sobre a sociedade. É a relação com o capital que assinala uma posição de esquerda, é portanto uma posição política de poder, uma relação que afirma a soberania de uma sociedade não capitalista. Não permitir que um grupo social seja autorizado a converter o interesse geral no seu próprio interesse existencial. [8]

Ser de esquerda não é certamente fomentar a precariedade: "uma massa desprotegida, em total impotência, oferecida ao despotismo do capital – como se isto representasse "eficiência". Não é também, subordinar a sociedade ao excessivo poder da finança de tal forma que a expõe à alternativa de a salvar ou perecer com ela. Ser de esquerda é portanto reconhecer e lutar pela necessidade imperiosa de mudar as estruturas financeiras e passa inicialmente pelo controlo público da banca. O escândalo não foi salvar os bancos, foi terem sido salvos sem a menor contrapartida dando-lhes carta-branca para retomarem os seus tráficos. [8]

Não será política de esquerda defender a "democracia liberal", que sempre consistiu na da repressão das classes trabalhadoras e na desigualdade. Não será ser de esquerda, destruir, pelas privatizações, a economia mista definida na Constituição. Ser de esquerda, não é certamente enfraquecer o Estado, tornar inútil ou ineficiente o controlo público sobre as grandes empresas e a finança e dizer que isto é democracia. Tal como não é chamar totalitarismo à participação popular, ao combate às desigualdades, á subordinação do poder económico ao poder político.

Não será política de esquerda, considerar que as contradições antagónicas do capitalismo podem ser resolvidas por uma reforma fiscal. Hemingway dá-nos em Por Quem os Sinos Dobram uma clara imagem do falhanço do reformismo, quando um combatente republicano responde a Jordan, internacionalista norte-americano: " Esses impostos parecem-me revolucionários. Eles (os grandes proprietários) vão-se revoltar contra o governo quando se virem ameaçados, exatamente como os fascistas fizeram aqui". Eis a raiz do neoliberalismo.

O que pode distinguir uma esquerda consequente de meros palradores ou oportunistas é a definição do papel do Estado: o que controla, a favor de quem e de quê. É bater-se pela soberania como forma de defender os interesses nacionais e populares. É defender o planeamento democrático e a análise económica baseada na avaliação de custos e benefícios sociais.

Pode-se ser de esquerda sem se assumir como marxista. O que não se pode, na nossa opinião, é pretender ser-se de esquerda e simultaneamente antimarxista. Sem o marxismo não é possível entender cabalmente o funcionamento do capitalismo nem a dinâmica das suas crises.

Ser de esquerda será também lutar pela unidade patriótica e popular contra o neoliberalismo fascizante, impulsionado pelas estruturas da UE. Será também, garantir a iniciativa popular dentro e fora do parlamento, e lutar para que o socialismo seja uma realidade numa Republica democrática.
Notas
[1] Na tradição medieval a procura do "Santo Graal" – cálice que teria recolhido sangue de Cristo – representava a tentativa de alcançar a perfeição cristã e devolver a paz e a grandeza ao decadente reino do mítico rei Artur.
[2] Engels, Princípios do comunismo, Obras escogidas, Ed. Progreso, Moscovo, 1973, p. 96-97
[3] Marx, O Capital, Livro 1, Tomo I, Ed. Avante, p. 265-266.
[4] Ver Acerca de negociações: lições do caso Syriza , Vaz de Carvalho
[5] O tratado de comércio livre EUA-UE: a grande golpada , Vaz de Carvalho,
[6] Ricardo Pais Mamede, O triângulo das impossibilidades da política orçamental ,
[7] Paul Ormerod, The Death of Economics, Ed. Faber and Faber, London, p. 36 e 41
[8] Frederic Lordon, A esquerda não pode morrer, Le Monde Diplomatique (ed. portuguesa), setembro 2014.


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